Responsável pela curadoria da próxima edição do Festival Janela Internacional de Cinema, Luis Fernando Moura vivenciou a Berlinale este ano, com o apoio do CCBA. Confira sua experiência no relato abaixo:
Berlinale e a desmesura da indústria de cinema
Por Luís Fernando Moura
9h15 da manhã. Um pouco de café restante na embalagem pra viagem, atravesso a fila do enorme Friedrichstadt-Palast, onde estamos em centenas, cato um assento central na terceira fileira, de onde a tela é grande e bonita. Toca o último sinal, a projeção se inicia. O novo filme do finlandês Aki Kaursmäki, The other side of hope, é mesmo lindo, como um amigo antes comentava.
É a história do cruzamento entre as jornadas de um nativo divorciado, que assume pequeno restaurante em crise financeira, e de um refugiado sírio, que tenta a sorte do trabalho em Helsinki. Parábola doce sobre exílio, diáspora e amizade extraída de uma narrativa do mundo em cacos que em tudo se impregna. Ganhou prêmio de melhor direção na competição oficial, via júri presidido pelo holandês Paul Verhoeven. Era o mínimo.
A Berlinale, como tantos outros festivais, não está a salvo e não quer mesmo se salvar, pelo contrário. Por aí afora as coisas são duras e os filmes as enfrentam com aval das curadorias. Ajuda a digerir a primeira refeição do dia encontrar este longa que, afinal, reitera o diagnóstico das urgências com candura filmada sem desespero, calmamente, sob a tranquilidade de um mestre indisposto a fetichizar temas. Algo de aliviar os ânimos sem que sejamos licenciados a nos esquivar do tino crítico que parece hoje ser não menos que fundamental.
Desta segunda edição do Festival de Berlim que pude acompanhar – com apoio do CCBA e a serviço do Janela Internacional de Cinema do Recife –, enfrentando mais uma vez uma média de cinco sessões por dia, de cedo da manhã até tarde da noite, saiu reforçada a impressão de que a Berlinale, entre os grandes festivais do mundo, exibe especial desejo de acolher tremores da geopolítica através de seu imenso, e naturalmente não pouco diverso, cardápio de filmes – exatamente 399. O mundo está em chamas e o cinema faísca.
Assim como Berlim, cidade nunca pouco fascinante, parece estar permanentemente meditando a respeito de sua vocação única para catalisar as maiores crises mundiais do último século, a Berlinale vem reinterpretar as máculas do planeta em sua produção de história de cinema do presente. Uma e outro, cidade e festival, forjam em si o epicentro de um olhar europeu, mas que a todos parece implicar no aqui-agora: as liberdades de ir e vir, as facilidades e dificuldades de ser, os estados de guerra.
Por um lado, parece tudo muito, demais. São muitos, muitos filmes, exibidos numa infraestrutura também eloquente na qual dezenas de salas de cinema recebem o público mais numeroso do mundo em festivais. Difícil dar conta, improvável não se exaurir, e desafiante escolher caminhos artísticos em meio às tantas mostras de interesse. Por outro lado, é justo o apelo à multidão que garante que algo especial, típico de uma engrenagem disposta a assumir este tamanho, está para acontecer.
Para nós, do Janela, vir aqui significa tomar parte num acontecimento onde a indústria de cinema se aglomera em massa: todos querem algo da Berlinale, ansiosos por se cruzar entre si ou cruzar com possíveis filmes de estimação. Chance então de, já no início de nosso calendário curatorial, quando começamos a imaginar o que deve ser o próximo Janela, ver e ouvir o que se passa entre realizadores, produtores, curadores, críticos dos mais distintos recônditos. A oferta de filmes brinda o rendez-vous como objeto precioso da indústria. A grade de programação demanda estudo – e, afinal, guarda boas surpresas. Por vezes, longe do glamourismo da Potsdamer Platz, centro midiático do festival.
Num ano como 2017, em que a realidade brasileira em particular vive momentos de tensão política e econômica – em tantos níveis –, é alegre ter testemunhado na Berlinale acontecimento emblemático para um Brasil de conquistas: nunca o país teve tantos filmes exibidos no festival, espalhados por suas mais diversas seções – somando 12 títulos, no total. A imprensa internacional, da Variety à Cahiers du Cinéma, não deixou de registrar esta evidente maturação do nosso mercado de cinema, que parece ir retomando um privilegiado espaço simbólico de propostas políticas e estéticas. Joaquim, produção luso-brasileira, foi exibido em sessão de gala.
Há, afinal, algo neste evento maiúsculo de que gosto mais e mais, e que deveria inspirar a todos os circuitos de cinema. O parque de exibição berlinense, em boa parte incorporado pela Berlinale em sua programação, é a outra ponta da cadeia a reluzir nesta empreitada massiva: são muitas as salas de rua sensacionais – e incrivelmente lotadas ao mesmo tempo –, dos imponentes Delphi Filmpalast e Kino International, respectivamente na Berlim Ocidental e Oriental, até o cinema da Akademie der Künste, uma humilde sala de projeção com ares de especial cinefilia. Quando o festival acaba, fica alguma vontade de acampar na terceira fileira e não se desacostumar dela.