O filme A Tabacaria / Der Trafikant (2019) estreia em um dos cinemas do Recife nesta semana, o Moviemax Rosa e Silva (programação). O longa-metragem, baseado no romance homônimo de Robert Seethaler, é uma produção austríaca/alemã dirigida por Nikolaus Leytner sobre a amizade entre um jovem alemão e o fundador da Psicanálise Sigmund Freud, interpretado pelo ator Bruno Ganz (de filmes como Asas do Desejo A Queda).  

Franz (Simon Morzé) conhece o médico austríaco aos 17 anos, quando chega a Viena e começa a trabalhar como aprendiz na tabacaria de Otto (Johannes Krisch), da qual Freud é cliente. Ao se apaixonar por Anezka (Emma Drogunova), Franz pede conselhos amorosos ao amigo. A Tabacaria / Der Trafikant também cita a ascensão do nazismo e a tensão política na Áustria da época. 

ENTREVISTA

O diretor Nikolaus Leytner foi entrevistado por Karin Schiefer para o portal oficial de cinema austríaco. Reproduzimos abaixo série de perguntas e respostas, disponível na página oficial do filme, com tradução de André Cavallini. 

KARIN SCHIEFER – Você se lembra da primeira vez que leu A Tabacaria

NIKOLAUS LEYTNER – Eu ouvi uma resenha no rádio e, no dia em que foi publicado, eu comprei o livro. Eu o li imediatamente e no mesmo instante tive a sensação de que seria uma ótima história para um filme – o que me deixou ainda mais feliz quando me pediram para fazer a adaptação. 

KARIN SCHIEFER – Como a trama te atingiu tão rapidamente e se tornou “uma boa história para um filme”? 

LEYTNER – Ele retrata um período que vimos com bastante frequência no cinema, mas de um modo muito diferente – da perspectiva de um jovem que chega à Viena pré-guerra, curioso, mas completamente ingênuo, e experimenta a situação de uma forma muito subjetiva. A agitação política ainda está em segundo plano no início da história, porque ele simplesmente ainda não se deu conta disso. E ele só percebe o que está acontecendo quando o mundo ao seu redor é afetado. Além disso, Robert Seethaler teve a brilhante ideia de criar uma amizade entre o menino e o mundialmente famoso Sigmund Freud, algo que não está registrado, mas permanece inteiramente plausível dentro do contexto. 

KARIN SCHIEFER – O filme continua muito fiel ao romance. É um princípio seu que uma adaptação cinematográfica permaneça fiel ao texto literário em que se baseia? 

LEYTNER – É sempre minha intenção transmitir o aspecto essencial de um romance ou peça de teatro em uma versão cinematográfica. No que diz respeito aos acontecimentos da história, ficamos muito próximos do original. Mas também inventei várias coisas, como a maneira como Franz gosta de divagar e a visualização de alguns de seus sonhos. Eu considero esses elementos do filme como formas de tornar mais fácil para mim contar a história da perspectiva de Franz. É sempre um processo de deixar algumas coisas e adicionar outras. 

KARIN SCHIEFER – Ao representar visualmente os sonhos, você introduz uma nota decididamente cinematográfica e cria o conteúdo dos sonhos. Como isso aconteceu? 

LEYTNER – Incorporar os sonhos como elementos visuais parece justificado, pois escrever seus sonhos é uma das três táticas que Sigmund Freud sugere quando Franz explica que está sofrendo por amor. É claro que também examinei de perto o livro A Interpretação dos Sonhos, de Freud, embora isso tenha me deixado bastante cético. Eu realmente não usei seus princípios quando inventei os sonhos. Adotei uma abordagem vagamente associativa, sem sentir a necessidade de obedecer aos critérios freudianos de interpretação. Afinal, a intenção aqui era impor uma ênfase cinematográfica e, para isso, utilizei elementos das experiências de Franz em novos contextos. 

KARIN SCHIEFER – A Tabacaria é um romance sobre amadurecimento, sobre quando os nazistas tomaram o poder na Áustria e sobre Sigmund Freud. Como você buscou estabelecer prioridades, enquanto mantinha um equilíbrio diante dessas três linhas narrativas? 

LEYTNER – Certamente existem vários eixos de relacionamento no filme. Otto Trsnjek se torna uma espécie de pai substituto de Franz, que cresceu sem pai. E, no filme, passo mais tempo no relacionamento do menino com a mãe, por meio da correspondência com cartões postais, então continuamos voltando para a região de origem Franz, a fim de fornecer um contraponto óptico à atmosfera fervilhante de Viena. Sua primeira experiência de amor é com Anezka, que, possivelmente, como Freud corretamente diagnostica, tem mais a ver com sua libido do que com seu coração. Além disso, vem a curiosa amizade com esse velho. As linhas narrativas estão intimamente entrelaçadas. Um dos maiores desafios foi trabalhar com Simon Morzé, que teve que passar pela transição de criança para homem em um período muito curto, devido à pressão da situação política, e amadurecer o suficiente para – nas palavras de Freud – enviar um sinal, passar uma mensagem.  

KARIN SCHIEFER – Franz, Sigmund Freud e Otto Trsnjek constituem os três personagens que conduzem o filme. Quais são os aspectos centrais das outras duas pessoas que precisavam ser desenvolvidas? 

LEYTNER – É sempre uma questão de relacionamentos baseados em troca mútua. Otto Trsnjek é, por um lado, o mentor que ensina a Franz o negócio de ser tabaqueiro, ao passo que também uma figura paterna. A amizade com Sigmund Freud é uma realidade que considero muito fácil de imaginar. Fiz algumas pesquisas sobre esse período na vida de Freud, embora nunca tenhamos tido a intenção de fazer o filme como uma história biográfica. Eu queria saber que tipo de pessoa ele era nessa idade. Mesmo estando com 80 e poucos anos de idade, ele ainda estava totalmente engajado em seu trabalho profissional, ao mesmo tempo em que sofria gravemente de seu avançado câncer de mandíbula. Posso imaginar que alguém que é cortejado por todo o mundo possa reagir assim quando encontra uma pessoa tão aberta e direta, e que também gostaria de não ser o mundialmente famoso ‘criador da psicanálise’. Freud também representa naturalmente uma velha ordem mundial que está em processo de desaparecer. 

KARIN SCHIEFER – Com suas posições marginais, os personagens femininos existem em condições de vida particularmente precárias. Como você enxerga os personagens femininos? 

LEYTNER – Na verdade, quando estávamos levantando o financiamento para o filme, recebemos uma recusa com base na representação de mulheres na história. A mãe de Franz, que criou o filho sozinha, está preparada para prestar serviços sexuais a um empresário local em troca de uma renda mensal e, no caso da Anezka, não há dúvida de que ela tem uma tendência a se aproximar de quem lhe oferecer o melhor sustento material – e depois político – e chances de sobrevivência. Nenhuma delas tinha escolha. Vejo a mãe de Franz como uma mulher forte que pensa muito no que seria melhor para seu filho. Ela não o força a trabalhar duro, como outros meninos da sua idade, mas o envia para a cidade grande (embora isso claramente não tenha sido uma decisão fácil para ela) na esperança de ajudá-lo a encontrar um futuro melhor. Parece-me que, com apenas algumas pinceladas, essas duas figuras femininas subsidiárias se tornaram personagens muito interessantes. 

KARIN SCHIEFER – Uma grande parte da ação acontece dentro da tabacaria. Este pequeno espaço, que oferece algo para todos – desde crianças em idade escolar até comunistas, e incluindo o professor – é um dos pequenos mundos de Robert Seethaler, que ele cria para representar os principais eventos do lado de fora. Como esse mundo tomou forma no filme? 

LEYTNER – A tabacaria certamente é um microcosmo aonde Robert Seethaler faz cada um de seus personagens deixar vestígios de si mesmos. Quando um filme é financiado, o dinheiro tem que ser gasto nas regiões onde o financiamento se origina. Então, construímos a tabacaria e a cidade ao redor dela em um estúdio em Munique, e situamos o Lago Attersee em dois lagos montanhosos no sul do Tirol. Naturalmente, a loja tinha que ser muito maior do que parece, para nos permitir filmar dentro dela. Foi emocionante construir um mundo inteiro, e, no filme, é claro, representa uma pequena célula de resistência dentro de um mundo que passa por mudanças imensas e finalmente termina, junto com seus protagonistas. 

KARIN SCHIEFER – O romance vendeu mais de 500 mil cópias na versão original em alemão. Quando você está fazendo uma adaptação cinematográfica, sabe que você está lidando com um best-seller, isso é um fardo ou um estímulo? 

LEYTNER – É um desafio que é tanto um fardo quanto um estímulo ao mesmo tempo. Você está fadado a contradizer as imagens que muitos leitores têm em suas cabeças. E você tem que se libertar dessas expectativas, caso contrário, elas o paralisam. Klaus Richter realizou o passo inicial, adaptando o enredo do livro para o filme. Ele escreveu o primeiro roteiro. Infelizmente, ele morreu durante o percurso. Revisei suas versões consideravelmente, em duas fases. A primeira vez que li o romance, foi como um leitor completamente normal, sem nenhuma bagagem, e eu simplesmente tive uma ideia de como adaptar a história. Foi só muito mais tarde, quando eu soube que tinha que criar de fato um roteiro, que eu li de novo a obra. Entretanto, limitei-me deliberadamente a ler o livro apenas duas vezes, porque queria manter a primeira impressão que tive do texto. Acho que a descrição mais apropriada para minha profissão é um termo em francês, a palavra “réalisateur”. Eu tenho que combinar as coisas da minha cabeça com a minha experiência como leitor e elementos do mundo real e criar uma realidade.